- Manie

- 7 de set. de 2020
Por Francirosy Campos Barbosa, 7 de Setembro para o blog Hijab • Se

Bismillah ar-Rahman ar-Rahim (Em nome de Deus, o Misericordioso, o Misericordiador). Que a paz e bençãos de Deus estejam sobre o Profeta Mohammad ﷺ, sobre sua família, companheiros e todos aqueles que seguem o seu caminho até o fim dos tempos. Todo o louvor pertence de Deus.
Quando me reverti ao Islam há quase oito anos senti um medo que vinha em mão dupla: por um lado o descrédito da academia — de não ter o respeito dos pares por ter me tornado “uma das pesquisadas” —, e por outro lado, a predominante dúvida: como ser uma boa muçulmana e realizar as minhas pesquisas sem que isso prejudicasse o julgamento divino? Ser docente de uma Universidade pública há 10 anos, pesquisadora do Islam há mais de duas décadas faz com que eu repense sempre as minhas pesquisas com muito cuidado e preze sempre pela ética de pesquisa em relação aos meus trabalhos e dos meus orientandos — ética esta pautada pela visão acadêmica e islâmica—. Diariamente me cobro sobre a minha intenção em cada ação e isso dá um peso às minhas decisões. Talvez, por isso, faço sempre a oração da orientação, pois nela fica explícito se o que farei será bom para minha religião, para minha devoção.
Quando realizava a pesquisa do documentário “Allah, Oxalá na trilha Malê” fui questionada se como muçulmana eu poderia entrar em um terreiro de Candomblé. A resposta que obtive do Sheikh na época foi se aquilo era importante para o trabalho que eu estava fazendo. Se sim, não havia problema, porque a contribuição seria maior. É vetado que muçulmanos participem de rituais que não sejam os próprios e que possam desviá-los do Tawhid (monoteísmo), mas neste caso era uma simples e mera observação como antropóloga, o que torna meu lugar ali diferente de ser uma participante. Dessa forma, deve-se evitar participar ou estar presente se não houver uma necessidade explícita, como é o caso de uma pesquisa. Durante muitos anos frequentei a mesquita sem ser muçulmana, estando apenas como antropóloga, se bem que os códigos de respeito e ética dos antropólogos em campo não deixam nada a perder de um muçulmano praticante: seguimos todas as recomendações.
O Profeta Muhammad (que a paz de Deus esteja sobre ele) nos ensinou: “as ações são julgadas pelas intenções e cada pessoa será recompensada de acordo com sua intenção”. Este Hadith significa muito para mim, pois deixa claro que as nossas intenções — não apenas as ações concretas — são por si só importantes para Deus. Aquilo que intencionamos é o que move nossa ação. Se a minha intenção foi trazer conhecimento à comunidade muçulmana e aos não-muçulmanos, porque não seguir os passos da minha pesquisa antropológica?
As intenções deveriam ser um ato intensificado e aperfeiçoado pelos muçulmanos, pois são elas que revelam nosso coração e propósito, que é adorar a Deus. A cada trabalho bem feito, a cada palestra, aula e ação que faço, intenciono que Deus oriente meu coração, minhas palavras e o meu agir.
Sinto-me privilegiada em ser uma antropóloga que se dedica a estudar o Islam, porque esta tem sido uma forma de estar mais perto de Deus, porém, sei dos riscos que corremos com a vaidade pelo trabalho realizado e pelas conquistas, porque somos humanos, e humanos são falhos. Alhamdulillah (Louvado Seja Deus) por tudo. Acessar o conhecimento sagrado, compreender a crença na perspectiva teológica enquanto também na perspectiva que os-as muçulmanos-as praticam, pensam e sentem a religião me faz estar cada vez mais satisfeita com o trabalho empreendido.
O Islam é uma fonte inesgotável: quanto mais estudamos, menos sabemos e mais queremos saber. Deus é sabedor da intenção e da busca pelo conhecimento de cada pessoa. Consegui encontrá-Lo através do conhecimento e dos anos de pesquisa como antropóloga, assim, só posso pensar que Ele aceitou meu esforço e abençoou o trabalho realizado até agora, porque Deus encaminha quem Ele quer, e desvia quem Ele quer.
O conhecimento — seja pelo viés da antropologia ou da teologia islâmica — me deixa mais perto do Sagrado, pois é onde posso demonstrar quem sou e quais são as minhas intenções. Muitos desafios se impõem ao muçulmano(a) acadêmico(a), começando ao lidar com sua vaidade — pois muitos se tornam doutores antes mesmo de serem, e outros se tornam doutores dentro da comunidade, sendo que quando estou dentro da comunidade quero mais é ser considerada como alguém que precisa ser melhor nas suas ações e não nos seus títulos —. Em certa medida são os títulos que sobrepõem às pessoas, e isso ainda me causa estranhamento. Outro ponto importante se refere às temáticas que por razões diversas oriento na universidade: questões de gênero, uso de substâncias tóxicas, doenças mentais. Se o Islam é perfeito, os muçulmanos não o são, por outro lado, os trabalhos contribuem para o melhor entendimento e desenvolvimento do próprio grupo. Há aqueles que ainda acham que não se deve pesquisar tais temas, talvez não reconheçam que não há iIjtihad sem o conhecimento acadêmico e sem investigação teológica-acadêmica. Como chegaríamos ao transplante de órgãos e cirurgias diversas, por exemplo, se não fosse por intermédio do conhecimento acadêmico atrelado ao conhecimento teológico? A Ciência é necessária para os muçulmanos. Ela foi dada por Deus, por meio da sua própria criação.
Deus dotou o homem de inteligência e de conhecimento. Ele é o próprio Conhecimento (‘Ilm) e este é um dos objetivos da Maqasid Sharia. Deus sabe o que aconteceu, sabe todas as possibilidades do que poderia ter acontecido e do que pode acontecer, e sabe o que vai de fato ocorrer. Ele conhece os nossos pensamentos e sentimentos mais profundos.
Ele foi Quem vos criou tudo quando existe na terra; então, dirigiu Sua vontade até o firmamento, do qual fez ordenadamente sete céus, porque é Onisciente.
Al-Baqara 2:29.
A “orientação” que eu daria aos meus irmãos(as) muçulmanos(as) e acadêmicos(as) é que tenham um Sheikh para orientar em determinadas questões, do mesmo modo que temos um orientador na pós-graduação, que deve questionar, discutir, problematizar com seu orientando(a) se está indo pelo melhor caminho. Do mesmo modo um Sheikh pode nos orientar para escolher o melhor caminho a seguir e desta forma não sair do Tawhid, além de nos fortalecer em momentos de dúvidas e angústias. O Islam é a religião do conhecimento e da busca por ele. Considerar a importância dos acadêmicos em nosso meio é fundamental, e lembrar aos acadêmicos, doutores, e outros que quem sabe mais é sempre Deus faz de nós uma comunidade mais justa e promotora do conhecimento. Lembrar que se esforçar é da nossa parte, enquanto concretizar é com Deus, o Altíssimo.
BarakAllahu Fikum! (Que Deus vos abençoe!)

Dra. Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, Livre Docente no Departamento de Psicologia da USP Ribeirão Preto, pós-doutora pela Universidade de Oxford – sob orientação do professor Tariq Ramadan–, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes. Autora do livro: Performances Islâmicas em São Paulo: Entre Arabescos, Luas e Tâmaras, 2017. Diretora dos documentários: Allahu Akbar, Vozes do Islã, Sacríficio, Allah; Oxalá na trilha Malê (todos disponíveis no vimeo.)
Acompanhe pelo Instagram: @francirosy_campos




