- 29 de jun. de 2020
Atualizado: 27 de jul. de 2020
Por Manie El Khal, 29 de Junho para o blog Hijab • Se

Existem histórias que parecem ficção. Algumas delas, gostaríamos muito que de fato fossem apenas utopias geradas por mentes criativamente conturbadas. Acontece que na verdade, existem realidades mais frias e sombrias que a própria ficção ousaria imaginar.
Já abordamos o assunto da violência doméstica em nossa plataforma diversas vezes. E ainda há muito o que se falar, fazer e desenvolver para que tenhamos resultados. Então, abrimos o espaço para uma - guerreira - muçulmana brasileira compartilhar um pouco de sua experiência vivendo por dentro do abuso doméstico. E com o seu relato, esperamos poder encorajar outras mulheres a se manifestarem sobre o abuso, saírem de vez da situação de risco, denunciarem seus abusadores e viverem novamente uma vida digna, assim como Soraya. Sem mais delongas, deixo com você o relato que fala e emociona por si só.
"Você já esteve em um pesadelo se contorcendo e beliscando a si mesma para acordar? O que acontece quando o que parece um sonho de tirar o fôlego vira um tormento que torna difícil o simples ato de respirar? E a pior parte: você tenta correr, gritar, se desvencilhar e se encontra presa, muda, acorrentada a algo que nem mesmo consegue compreender. A pior parte é que você não acorda.
Meu nome é Soraya V., sou brasileira e habito esse universo há 46 anos. Aos dezesseis anos pensei que fosse viver um conto de fadas. O sonho de qualquer jovem mulher, pensava eu. Me casei com um homem dois anos mais velho e logo no primeiro dia me arrependi amargamente me dando conta de que cometi o pior erro que poderia: assinei minha própria sentença, permiti que extorquissem minha liberdade.
Desde a primeira noite juntos, o dito cujo iniciou seus ataques a mim. Me machucava com agressões físicas, insultos e palavras cortantes, ameaças e abuso psicológico. Fui trancada dentro da minha própria casa, completamente proibida de me comunicar com meus pais e minha família. Já não bastasse transformar nosso lar em uma prisão, ele me censurou do meu refúgio. Todas as noites eu reclinava minha cabeça sobre o travesseiro e pensava no monstro que coabitava esse espaço comigo. Diferente dos filmes, esse monstro não se escondia debaixo da cama, se exibia sobre ela e deitava agressivamente comigo até gerar em mim um filho.
Não demorou muito para que isso acontecesse. Logo no primeiro mês de “casada” descobri que carregava em mim um bebê, pelo qual me apaixonei instantaneamente. Talvez, no meio desse caos eu encontrasse assim o meu lar dentro de mim. Essa criança representava para mim um novo ciclo, uma esperança, a reafirmação do meu poder como mulher. Contudo, o pesadelo prosseguia. Diariamente eu era agredida e temia não só pela minha vida, mas principalmente pelo meu filho. De fato, tive vários problemas na gravidez devido a isso e cheguei a correr risco próximo de morrer com o bebê no meu ventre. Ele me batia outra vez, e de novo e mais uma vez, repetidamente. Sem qualquer motivo. Não existia o menor senso de liberdade para mim, a simples ação de eu abrir a janela já me acarretaria consequências.
Devido às complicações na gravidez, nos mudamos para casa da minha mãe. Não se enganem, não houve qualquer acanhamento da parte dele. Ele teve sim a audácia de manter as agressões a mim – que eram cada vez mais intensas – debaixo do teto dos meus pais. Após o nascimento do meu filho isso se agravou ainda mais. Diversas vezes eu quis me separar, mesmo que isso soasse ruim aos ouvidos alheios, porém, minha mãe se opôs à ideia. Ela simplesmente não aceitava o divórcio – como era (e talvez ainda seja) comum naquela época –. Eu ainda era muito inocente e não existia internet ou acesso à tecnologia e à informação, então eu não soube lutar contra isso sozinha. Obedeci à minha mãe e ponto.
Ao completar 18 anos assinei minha própria alforria e mandei ele embora no dia seguinte.
“Essa separação não vai acontecer. Está me entendendo? Ou melhor, com uma condição. Quero o seu filho.”
O cafajeste sabia exatamente como manipular uma mulher. Típico de um abusador, não é mesmo? Ele sabia que assim tornaria as coisas mais difíceis. Meu filho tinha pouco mais de 2 anos na época, e depois de muitas tentativas de viver com ele, acabei cedendo e entreguei a criança para ele levar. Quando isso aconteceu foi nítida a expressão de “perdido” dele, pois nunca esperou essa atitude de mim.
Me separei e fui viver, viver meeesmo, de verdade. Conheci algumas garotas e ficamos muito amigas, com quem eu então saía todos os dias. Ele não suportando me ver livre, tentou me matar. Quantas vezes não ouvimos relatos de situações como essa? O abusador quer ter total controle de você e da sua vida. Ele quer que a vítima se submeta a ele, goste ela ou não. Se o plano dele dá errado, ele tenta dar um fim em tudo, pois se sente no direito de fazê-lo. “Como assim você pensa que vai me desobedecer, contrariar, negar e ainda ousa viver sua própria vida?” Que ameaça ao ego fraco de um abusador.
Obviamente o denunciei à polícia e ainda fiz questão de ir junto ao delegado buscar a figura na casa do pai para o levarmos ao novo lar que merecia. Mas como nem tudo são rosas e a justiça mundana não é lá tão justa, ele conseguiu ser solto através do pai, que era oficial da marinha.
Novamente solto, estava livre para voltar às suas manias. Não demorou para ir até a casa da minha mãe, onde se sentiu no direito de me bater outra vez e quebrar tudo que encontrava pelo caminho. Fui na delegacia e denunciei pela segunda vez. Com o passar do tempo percebi que ele foi aceitando e mais tarde acabou se casando com uma moça que trabalhava na casa da mãe dele. Com ela, teve mais dois filhos. E neles batia muito mais do que em mim, até que no ano de 2002 deu um tiro na própria esposa – que na ocasião estava com o filho do casal de apenas 6 meses nos braços –. No mesmo ano, foi morto. Assassinado.
Ainda hoje não se sabe o que realmente aconteceu. Quem o matou e o porquê. Mas sabemos de uma coisa: seguimos vivas e usufruímos da maior dádiva dessa vida, a liberdade de se viver. Eu e ela somos amigas até hoje, nunca tive raiva dela ou qualquer tipo de sentimento ruim. Ela foi uma mulher guerreira e criou com honra ambos os filhos, hoje uma enfermeira e um nutricionista. Já eu, sigo grata pelo meu menino advogado. Aliás, sigo grata por tudo. Pelo Islam, pela vida, pela liberdade, pelo meu valor como ser humano e mulher, e principalmente, por viver uma fé que me assegure tudo isso.
Hoje, não preciso mais me retorcer para acordar de um pesadelo. Despertei. E a vida pode não ser sempre um sonho, mas eu sempre saberei que mesmo que pareça não haver saída, há quem me cuide, me guie e crie portas para que eu possa passar em lugares onde só existem empenas cegas.
E quem tiver consciência de Deus, Ele lhe apontará uma saída. E o agraciará de onde menos espera. Quanto àquele que confiar em Deus, por certo Ele lhe É Suficiente, porque Allah Cumpre o que Promete.
- Alcorão Sagrado. Surah 65: 2-3 (O Divórcio).
A trajetória nos faz mais fortes e eu não olho para trás senão para agradecer pela imensurável dádiva que é o presente.
Alhamdulillah por tudo."
Qual a sua história? Não seja a vítima, assuma o papel de protagonista, mesmo que isso vá te custar algo. Nada é tão caro quanto a liberdade.

Manie El Khal é Designer de Interiores, estudante de Arquitetura & Urbanismo e colunista da Hijab • Se. Mineira e descendente de marroquinos, atua como professora, palestrante, orientadora para mulheres muçulmanas e não-muçulmanas na comunidade de Minas e trabalha como voluntária para a IERA em Belo Horizonte.
Amante da fé e da arte, mescla-as para traduzir sua essência.
Conheça mais sobre sua história através do Instagram: @maghrebiyah






